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Crítica: ‘Homem com H’ celebra o timbre da desobediência

ANDRÉ GUERRA

Um garoto encara um paredão de mata fechada à sua frente, não com medo ou intimidação, mas um olhar de fascínio. É como se as cores e texturas da natureza provocassem nele uma identificação sonora e sensorial que somente muitos anos depois seria compreendida totalmente. Após ser encontrado pelo pai, ele é castigado violentamente, mas o enfrenta e se recusa a chorar quando é obrigado a fazê-lo. Coragem, resistência e irreverência: esse é Ney Matogrosso, desde criança.

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Homem com H, cinebiografia que entra em cartaz nesta quinta no Recife, contextualiza a infância de um dos mais célebres artistas da música brasileira – marcada pela relação conturbada com o pai, o militar Antônio Matogrosso (vivido por Rômulo Braga) – para rapidamente trazer o pernambucano Jesuíta Barbosa ao papel principal na vida adulta, dando alma e corpo à trajetória transformadora do cantor mato-grossense.

Responsável por músicas que transcenderam gerações, como Sangue LatinoBalada do Louco e a própria Homem com H, Ney, hoje com 83 anos, foi parte fundamental no projeto, inclusive no trabalho de dublagem das cenas cantadas. Jesuíta empresta sua própria voz de maneira pontual (como se nota na emblemática Rosa de Hiroshima) e concentra a principal qualidade do longa, entre várias outras: a facilidade com que reproduz os trejeitos e o olhar tão reconhecíveis do artista sem virar uma grande caricatura.

Dividindo a cena com a também pernambucana Hermila Guedes (no papel de Beita, mãe de Ney), Caroline Abras (como Lara) e Bruno Montaleone (Marco de Maria), o ator principal incorpora os gestos voluptuosos e cheios de cotorsões de forma gradualmente mais natural dentro do filme, cujo roteiro atravessa as principais fases da sua carreira, desde a explosão da banda Secos & Molhados (com Jeff Lyrio interpretando Gerson Conrad e Mauro Soares como João Ricardo) até o seu relacionamento com Cazuza (estreia impressionante de Julio Reis no cinema).

Além desse comprometimento de Jesuíta com a performance física, a direção de Esmir Filho (do curta viral Tapa na Pantera e dos dramas Os Famosos e os Duendes da Morte e Alguma Coisa Assim) equilibra bem o lado surprendentemente introspectivo do personagem real com as sequências de palco e evita que Homem com H se torne uma sucessão de clipes genéricos, vício frequente de longas do gênero, que costuma comprometer a progressão dramática da história.

No processo, o filme não escapa de algumas outras armadilhas da cinebiografia contemporânea, a começar pela intercalação previsível de sexo e música, o desenrolar abrupto de relações entre os personagens e a unidimensionalidade dos coadjuvantes. A opressão representada pelo pai, vendida pelo filme como fator decisivo na personalidade irreverente e performática de Ney Matogrosso, é encarada do modo mais simples possível (cheio de alegorias visuais e representações clipescas) – e resolvida em uma chave bem mais convencional do que poderia.

É na sensorialidade com que retrata a música pulsando nas veias do personagem e na evocação da presença imponente de Ney através da belíssima caracterização, porém, que Homem com H se encontra plenamente e, assim, abraça também a plateia. E promove a celebração em vida de um artista que fez da provocação sua arte e, da arte, provocação.

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