ALLAN LOPES
Especial para o Giro
Protagonista na tradição cristã durante a Semana Santa, o bacalhau se tornou mais que um prato no Brasil – é um símbolo quase sagrado. Sua preparação vai além da técnica: para muitos, como as chefs Lúcia Soares e Rosa Maria, é um ato carregado de memória afetiva e devoção. Quando se reuniram no encontro promovido pelo Viver, a cumplicidade entre as duas foi imediata, como quem se reconhece na mesma história e nos mesmos sabores.
Prova disso são suas trajetórias cheias de coragem. Lúcia, que deixou sua terra natal, Maceió, e enfrentou o ambiente então predominantemente masculino da gastronomia, hoje comanda o requisitado Alho & Óleo, em San Martin. Rosa, por sua vez, começou como camareira, conquistou a cozinha degrau por degrau e hoje é a proprietária do centenário Hotel Central, onde mantém o Tempero da Rosa. E, se hoje são referências, é porque, como nos pratos de bacalhau que preparam, souberam encontrar a medida certa entre tradição e ousadia.
Coco fresco, memória e afeto são a essência do bacalhau de Rosa, cujo preparo, simples e rápido, começa com o peixe frito, seguido pelo molho cremoso de coco peneirado, verduras frescas e o toque inconfundível das pimentas do reino e de cheiro, que dão personalidade à receita. Mas, por trás dos 20 minutos de preparo, há décadas de lembranças do seu pai, Manoel Lourenço, que tornava o almoço da Sexta-Feira da Paixão uma espécie de cerimônia. “Quando preparo um bacalhau, é como se eu revivesse tudo isso”, conta ela, emocionada.
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Já as raízes lusitanas do bacalhau feito por Lúcia floresceram na cozinha do restaurante Portugália, onde iniciou como auxiliar e, com o tempo, assumiu a gestão da casa. Ela dominou a arte do bacalhau em suas múltiplas versões – com natas cremosas, assado ao forno em azeite dourado ou à lagareiro. Mas é o Bacalhau à Zé do Pipo que lhe traz memórias mais doces. “Me transporta direto aos meus primeiros dias na cozinha”, relembra. A montagem leva purê de batata, enriquecido com manteiga, creme de leite, azeitonas verdes e maionese caseira gratinada.
O segredo, porém, começa muito antes do forno: está no tratamento. Lúcia segue um ritual meticuloso que envolve dessalgar o bacalhau com trocas frequentes de água. “Quando sai todo o sal, dou uma leve fervura só para dar o ponto. Depois, o peixe é mergulhado no leite e pega outro sabor. Esse mesmo leite vira molho branco ou serve para cozinhar a batata para fazer o bolinho”, destaca.
Para quem não come coco, Rosa aposta no peixe à escabeche, com molho ácido de legumes, que lembra uma peixada leve. Já na versão vegana, ela substitui o bacalhau por algas marinhas e caju, mas mantém o leite de coco, preservando o espírito da receita original. E ainda tem a moqueca de banana, com pirão e um toque de alga. “Parece até peixe”, garante a chef.
Longe do alvoroço natalino ou da fartura junina, é a mesa silenciosa da Sexta-Feira da Paixão que fala mais ao coração de Rosa. “É um lugar de devoção, onde todos rezam antes de comer. Cada prato vem carregado de respeito”. Lúcia assente: “É preciso ter respeito pelo alimento”. Para ambas, cozinhar nesse dia é mais do que preparar comida. É um gesto de fé.