ANDRÉ GUERRA
Em meados dos anos 1930, os irmãos gângsteres conhecidos como “Os Gêmeos”, apelidados de Fumaça e Fuligem (ambos vividos pelo astro Michael B. Jordan), voltam para sua cidade no Sul dos Estados Unidos após uma longa e lucrativa temporada de roubos em Chicago. A dupla agora busca uma nova empreitada: a abertura de um clube de blues para toda a comunidade. Para isso, eles compram a casa de um antigo líder da Ku Klux Klan (movimento reacionário e extremista, que, entre outras coisas, defende a supremacia branca) e recrutam vários conhecidos para diferentes funções.
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O que “Os Gêmeos” não imaginam é que a noite de inauguração, cheia de música, comida, bebida e convidados, se transformará em um pesadelo sangrento após três figuras misteriosas baterem à porta para participar da festa. E é nesse cenário de gradual intensidade que, da mesma forma, aparecem a beleza e a ambição de Pecadores, que entra em cartaz amanhã nos cinemas do Recife.
Célebre por seus trabalhos em Creed: Nascido para Lutar (2015) e, principalmente, em Pantera Negra (2018), primeiro longa de super-herói indicado ao Oscar de Melhor Filme, Ryan Coogler faz parte do seleto grupo de cineastas com cacife suficiente em Hollywood para comandar um projeto totalmente autoral com grande orçamento e suficiente liberdade criativa. As razões dessa confiança ficam plenamente perceptíveis aqui em Pecadores, que calha também de ser o primeiro filme baseado em uma ideia original do diretor entre todos os seus cinco títulos (seu aclamado longa de estreia, Fruitvale Station: A Última Parada, de 2013, era inspirado em uma história verídica).
Filmada em IMAX e repleta de imagens que evocam a grandiosidade e beleza do cenário, das imensas plantações de algodão durante o dia ao uso das luzes da noite, esta surpreendente combinação de drama de época e horror vampiresco tem ainda um sagaz senso de humor que dá a liga necessária de diversão a uma história que se torna gradualmente mais violenta e sempre carregada de uma versátil e propositalmente anacrônica musicalidade.
Uma narrativa negra de terror ambientada após a escravidão americana naturalmente evoca uma fantasmagoria referencial àquele período. A sensação de liberdade dos protagonistas e o clima festivo de dança enchem a tela de voluptuosidade durante a primeira hora, mas, em seguida, o mal enraizado naquela religião assume a forma de um desregrado banho de sangue. E o roteiro é inteligente ao não transformar os protagonistas em heróis, tampouco fazer julgamentos morais de suas ações prévias.
O trunfo de Pecadores, porém, não está somente em sua força temática e nas referências históricas, mas sobretudo no vigor com que Ryan Coogler conduz uma galeria de personagens ligados aos gêmeos principais, permitindo que cada um deles ganhe vida para além do magnetismo irrepreensível de Michael B. Jordan. Hailee Steinfeld, revelada ainda adolescente no aclamado Bravura Indômita (2010), aqui faz o papel de uma antiga amante de um dos irmãos. O elenco traz ainda Delroy Lindo, Jayme Lawson, Li Jun Li, Wunmi Mosaku e Miles Caton, a revelação do filme e alma de sua música.
No deserto de ineditismo que se tornou o calendário de lançamentos nos últimos meses, todas as produções de grande porte feitas a partir de material original merecem crédito apenas por existir. Quando se trata de um filme com o impacto formal, temático e narrativo de Pecadores, no entanto, vira um acontecimento.