ANDRÉ GUERRA
Foto: Divulgação
]Um casal participa de uma enfática oração em uma pequena igreja da sua comunidade, enquanto o pastor profere palavras de glória. Não demora para que o espectador perceba que marido (John R. Dávila) e esposa (Tatiana Astengo) vivem uma crise: com todas as tentativas viáveis, ela não consegue engravidar. O destino os surpreende quando ele encontra, caída e passando mal na rua, uma jovem da vizinhança (Lucero López Ponce) que, após aparecer grávida, é acolhida por ambos em sua casa, sob acordo de entregá-los a criança ao nascer.
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Exibido na competição de longas-metragens sul-americanos do 3º Bonito Cinesur — Festival de Cinema Sul-Americano, Redención é dirigido e escrito pelo peruano Miguel Barreda-Delgado, cineasta pouco conhecido do público brasileiro, mas já com vários filmes no currículo, como Simon, El Gran Varón e La Cantera. Este, no entanto, com seus desdobramentos melodramáticos que flertam com a telenovela, é possivelmente aquele de mais fácil conexão com o público brasileiro, tanto pelas suas preocupações cinematográficas quanto temáticas.
Do ponto de vista da forma, o longa utiliza sempre o dispositivo do plano-contínuo: todas as cenas são filmadas sem cortes, recurso a que frequentemente os diretores recorrem para intensificar o realismo e aumentar a imersão na dramaturgia – ou, nos piores casos, para evidenciar um virtuosismo vaidoso, vazio. Para o bem e para o mal, Rendención não está em nenhum dos dois extremos.
Essa fotografia, que parece uma ‘entidade’ seguindo os personagens, possui algumas soluções interessantes no modo como apresenta a casa onde toda a história vai transcorrer, com uma iluminação que fica mais escassa e opressora à medida que o conflito e os dilemas avançam. A contrapartida é que não raramente a câmera se torna perceptível em demasia, direcionando sem sutilezas o olhar do público para os objetos e situações. O resultado, assim, sufoca a organicidade do texto e dos acontecimentos, que soam excessivamente planejados.
Já tematicamente, a fé utilizada por alguns como ferramenta para mascar diferentes tipos de violência está longe de ser uma discussão apenas sul-americana. Mas, em Redención, existem camadas pouco exploradas pelo roteiro que anceiam em vir à luz durante toda a projeção: uma de ordem de classe e outra de raça, já que a jovem acolhida pelo casal (interracial, diga-se) é uma moça negra e economicamente bem mais vulnerável do que eles.
O casal protagonista — destaque para a interpretação fervorosa de Tatiana Astengo — materializa bem esse tema, já que literalmente usam a jovem grávida por precisarem do seu corpo e, no momento em que ele se torna um problema, não tem qualquer dificuldade de descartá-lo. A trama infelizmente não tem estofo e coerência suficientes para sustentar essas discussões, apelando para elipses e omissões que mais prejudicam o drama do que o tornam complexo.
O que fica de verdadeiramente interessante na experiência do filme, neste caso, é o debate sobre o controle do corpo feminino travestido de defesa da vida. Entre os vários tópicos sensíveis comuns aos países latinos presentes nesta terceira edição do Bonito Cinesur, esse trazido por Redención talvez tenha sido o que mais colocou o dedo na ferida.